terça-feira, 6 de agosto de 2013

O homem natural odeia a Graça


Por C. H. Spurgeon
 
O teor do evangelho gira em torno do fato de que o homem está morto em seus pecados, e que a vida eterna é um dom de Deus, e se colocaria contra a totalidade deste teor básico do evangelho quem defendesse que o homem pode conhecer e amar a Cristo sem a atuação do Espírito Santo. O Espírito Santo encontra os homens tão desprovidos de vida espiritual, como aqueles ossos secos na visão de Ezequiel; o Espírito tem de juntar cada osso com seu osso, até reconstituir o esqueleto, e depois, vindo dos quatro cantos, precisa soprar sobre esses ossos mortos a fim de que recebam vida. A não ser pelo Espírito de Deus, as almas dos homens teriam de permanecer no vale de ossos secos, mortas, e mortas para sempre.

Mas as Escrituras não dizem apenas que o homem está morto em pecado; afirmam algo pior que isso: que ele, por natureza, é absoluta e totalmente contrário a tudo que seja bom e reto. "Portanto a intenção da carne é inimizade contra Deus, pois não é sujeita à lei de Deus, nem em verdade o pode ser" Rom. 8:7. Folheemos as páginas da Bíblia e continuamente é repetido que a vontade do homem é contrária às coisas de Deus. Que disse Cristo naquele texto tão freqüentemente citado pelos arminianos para negar a doutrina que tão claramente afirma? Que disse Ele aos que imaginavam ser possível ao homem vir a Ele sem a influência divina? Primeiramente afirmou: "Ninguém pode vir a mim, se o Pai que me enviou não o trouxer". Entretanto, disse algo ainda mais enfático: "E não quereis vir a mim para terdes vida".

O homem não quer vir. Aqui se encontra a coisa fatal; não é apenas que o homem se encontra sem forças para fazer o bem, e sim que é suficientemente poderoso para fazer o mal, de modo que a sua vontade está perversamente disposta a ir contra tudo que é reto. Vá, arminiano, e diga a seus ouvintes que eles podem vir a Cristo, se assim o desejam, mas saiba que o seu Redentor o observa face a face e lhe diz que você está proferindo uma mentira! Os homens não querem vir. Nunca virão por si mesmos. Ninguém pode induzi-los a vir, nem mesmo forçá-los a vir com todas as suas ameaças, nem seduzi-los com todos os seus convites. Eles não querem vir a Cristo para terem vida. Até que o Espírito os traga, não quererão vir, nem poderão vir.

E é pelo fato de que a natureza humana é hostil ao Espírito de Deus, que o homem odeia a graça, despreza a maneira pela qual se oferece esta graça, e é contrário à sua natureza orgulhosa o humilhar-se para receber a salvação pelos méritos de outro. Daí, pois, surge a necessidade de que o Espírito opere diretamente no homem para mudar a sua vontade, corrigir as inclinações do seu coração, e depois de colocá-lo no caminho certo, dar-lhe forças para andar nele. Oh, se todos estudassem o homem e chegassem a compreendê-lo, não poderiam deixar de ser zelosos nesta doutrina da necessidade da obra do Espírito Santo! Com razão um grande escritor observou que jamais conheceu um homem que sustentasse algum erro teológico, que ao mesmo tempo não mantivesse alguma doutrina que atenuasse a depravação humana.

O arminiano diz que é verdade que o ser humano está espiritualmente caído, todavia acrescenta que ele ainda possui o poder da vontade e essa vontade é livre; ele pode levantar-se. Atenua-se dessa forma o caráter desesperador da queda do homem. Por outro lado, o antinomiano afirma que o homem não é responsável, pois nada pode fazer; por conseguinte não está obrigado a fazer nada. Não é sua obrigação crer, nem é sua obrigação arrepender-se. Vemos aqui que ele também atenua a condição pecaminosa do homem e lhe faltam idéias corretas a respeito da Queda. Entretanto, uma vez mantida a posição verdadeira, ou seja, a de que o ser humano não só está completamente caído, perdido e condenado, e sim também de que é culpado e por si mesmo impotente, então necessariamente você adotará a posição doutrinária correta em todos os demais pontos do grande evangelho do Senhor Jesus. Desde que se creia o que as Escrituras ensinam sobre o homem -posto que se aceite que o seu coração é depravado, seus afetos corrompidos, seu entendimento obscurecido e sua vontade pervertida, então você terá de sustentar que, se uma pessoa assim tão miserável há de ser salva, essa salvação deverá ser efetuada pelo Espírito de Deus, e por Ele somente.

A IGREJA LOCAL


Por Pr. Silas Figueira
Comentando sobre este assunto, R.C. Sprou editor geral da Bíblia de Genebra diz que “cada igreja local é uma manifestação da única Igreja Universal e deverá incorporar a natureza dessa Igreja, como a família regenerada do Pai, o corpo ministerial de Cristo e a comunhão pelo Espírito Santo. No processo de separar-se da Igreja Católica Romana, os reformadores precisavam estar certos a respeito de quais seriam as marcas da Igreja verdadeira. Nas Escrituras, eles acharam a resposta em termos de dois critérios.

  1. A fiel pregação da Palavra de Deus. Isso significa que a Igreja ensina o evangelho cristão de acordo com as Escrituras. Qualquer grupo que nega a Trindade, a divindade de Cristo, a expiação pelos pecados ou a justificação pela fé somente se comporta como os separatistas dos tempos primitivos da Igreja, cuja negação da Encarnação (1Jo 4.1-3) levou João a dizer: “não eram dos nossos” (1Jo 2.19).
  2. O correto uso dos sacramentos. Esse critério significa que o Batismo e a Ceia do Senhor são usados e explicados como exposições do evangelho da fé em Cristo. Transformar esses Sacramentos em superstições que anulam a suficiência da fé em Cristo é solapar a identidade da Igreja, como qualquer outra coisa que obstrua a fé em Cristo. Um propósito do Batismo é identificar aqueles que são recebidos na Igreja visível. A Ceia do Senhor confirma, para os fiéis, sua condição de membros da Igreja e sua comunhão uns com os outros e com Cristo.1  

A Igreja, “Corpo de Cristo”, é perfeita e sem mácula, mas a igreja local ainda é formada por pessoas imperfeitas e que ainda não alcançaram a perfeição, pois ainda estão vivendo em um corpo que é carne; embora, em Cristo Jesus já tenham alcançado a salvação. Por isso que a igreja local ainda é um lugar lastimável. Pois nela, contudo, há sempre alguns (e frequentemente muitos) que vivem como parasitas. Os de fora veem apenas os parasitas e pensam que eles são a igreja. Isso não é verdade, assim como os pregos não são o casco do navio. Como disse Eugene Perteson: “Nenhuma igreja jamais existiu em estado puro. É composta de pecadores. As pulgas acompanham o cachorro”.2

A igreja é o lugar aonde vamos para descobrir o que estamos fazendo certo – lugar de afirmação. Mas a igreja é também o lugar onde buscamos saber em que estamos errando – lugar de correção. Na igreja, ansiamos ouvir as promessas – lugar de motivação. Nenhuma comunidade sobrevive sem qualquer das partes. Precisamos de afirmação, correção e motivação. 3 Essa tríplice orientação espiritual capacita o povo de Deus para viver em fé, confiante nEle, em ambiente hostil. O processo de afirmação, correção e promessa ou motivação é o que os gregos chamavam de paidea, processo complexo pelo qual a comunidade passa adiante sua paixão e sua experiência.4

As igrejas são o meio que Deus utiliza para unir as pessoas, para que entendam quem é o seu Senhor, quem elas mesmas são e, assim, desenvolvem relacionamentos coerentes com essas identidades. 

Cada mensagem começa com o Senhor dizendo: “Conheço...”, no grego oida. Cada mensagem demonstra conhecimento exato de tudo que acontece na congregação. A mensagem se desenvolve de acordo com os fatos econômicos, culturais e políticos da cidade e da igreja. A situação social externa e a situação religiosa interna se unem na mensagem formulada. O conhecimento dEle não é exterior, como seria o de um jornalista dedicado; é um conhecimento preciso do que significa viver como povo de Deus naquele lugar – conhecimento compreensivo do que implica, para eles, viver no nome de Jesus.5

COMO ASSIM [OUTRAS] COISAS?


Por Marcelo Berti
Será que Colossenses 1:16, 17 (ALA) exclui Jesus de ter sido criado, ao dizer “nele foram criadas todas as cousas . . . tudo foi criado por meio dele e para ele”? A palavra grega traduzida aqui por “todas” é pán‧ta, forma flexionada de pas. Em Lucas 13:2, ALA traduz isso por “todos os outros”; BV “os demais”; HR diz “todos os mais”. (Veja também Lucas 21:29 na BLH e Filipenses 2:21 na PIB.) Em harmonia com todas as outras coisas que a Bíblia diz a respeito do Filho, a NM atribui o mesmo sentido a pán‧ta em Colossenses 1:16, 17, de modo que reza, em parte, “mediante ele foram criadas todas as outras coisas . . . Todas as outras coisas foram criadas por intermédio dele e para ele”. Assim, indica-se que ele é um ser criado, faz parte da criação produzida por Deus.[1]
Muitas pessoas querem saber a verdade sobre quem Jesus é, e a frase acima demonstra exatamente isso. Algumas pessoas acham que Ele é o Criador de todas as [outras] coisas encontradas no universo. Ou seja, embora seja Ele um ser criado por Jeová, ele é criador com Ele de todas as [outras] coisas. Isso é exatamente o que lemos na citação acima, retirada do livro Raciocínios. Mas, será isso mesmo verdade?
Nossa primeira observação a esse argumento é que o adjetivo grego “pas” é usado 1243x em todo o Novo Testamento, e o autor está fundamentando sua tradução em três ocorrências. Em outras palavras, 1240 ocasiões são menos importantes que essas três. Ou seja, a tradução proposta pela TNM, seguindo o argumento desse autor, é fundamentada na exceção do uso do adjetivo “pas”. Nossa pergunta nesse ponto é: Isso é válido?
Para responder a essa pergunta, vamos analisar os exemplos que o autor oferece. Em Lc.13.2 lemos na TNM: “Ele lhes disse, assim, em resposta: “Imaginais que esses galileus se mostraram piores pecadores do que todos os outros galileus, porque sofreram tais coisas?”. Note que o termo galileus é usado duas vezes e que o texto faz clara distinção entre dois grupos distintos de galileus. Ou seja, o próprio texto estabelece um contexto em que o adjetivo “pas” não possa significar todos em absoluto, mas todos em distinção do grupo previamente identificado. Portanto, parece óbvio que o segundo grupo de galileus não é o mesmo do anterior, tendo a inclusão do termo “outros” ou não. Segue-se que, nesse caso o contexto exige tal inserção. Mas que dizer de Cl.1.16: nesse texto vemos esse indicativo?
Em Lucas 21.29 lemos na TNM: “Com isso contou-lhes uma ilustração: “Reparai na figueira e em todas as outras árvores”. Note que o caso é similar: Dois grupos distintos de árvores são contrastadas, as figueiras e as demais. Nesse caso, como no anterior, o contexto exige tal distinção. Será que tal exigência é vista em Cl.1.16?
Em Filepenses.2.21 lemos na TNM: “Pois todos os outros estão buscando os seus próprios interesses, não os de Cristo Jesus”. Novamente dois grupos contrastados: os cristãos e os demais. Novamente vemos que quando o contexto exige a distinção, o uso do termo “outros” na tradução não é um equívoco, mas uma necessidade. Mas, em Cl.1.16 vemos essa exigência e necessidade? Com que criação as “outras” coisas foram contrastadas?
Note que o autor responde a essa pergunta: “Em harmonia com todas as outras coisas que a Bíblia diz a respeito do Filho, a NM atribui o mesmo sentido a pán‧ta em Colossenses 1:16, 17, (…) Assim, indica-se que ele é um ser criado, faz parte da criação produzida por Deus”. Ou seja, o autor não encontrou no contexto do texto qualquer indicação de contraste sendo realizada, e de pronto, julgou necessário recorrer à sua teologia para justificar a versão da TNM. Note que tal autor nada apresenta sobre “todas as outras coisas que a Bíblia ensina”, apenas diz que o todo das escrituras afirmam que Jesus é Criado.
Vamos considerar, portanto, que tal autor entende o termo “primogênito” como um indicativo de sua criação. Aliás, pouco antes no mesmo texto ele atesta: “a Bíblia aplica esta expressão unicamente ao Filho. Segundo o significado costumeiro de “primogênito”, indica que Jesus é o mais velho da família dos filhos de Jeová[2]”. Segundo esse autor, o texto de Paulo utiliza o sentido costumeiro de “primogênito” e conclui que Jesus é a primeira criação de Deus. Entretanto, esse não é o único argumento em defesa da TNM, pois o autor completa:
“Antes de Colossenses 1:15, a expressão “primogênito” ocorre mais de 30 vezes na Bíblia, e em todos os casos em que é aplicado a criaturas viventes, tem o mesmo significado — o primogênito faz parte do grupo. “O primogênito de Israel” é um dos filhos de Israel; “o primogênito de Faraó” é um da família de Faraó; “os primogênitos dos animais” são eles próprios animais. O que faz com que alguns atribuam, então, um significado diferente a “primogênito” em Colossenses 1:15? O emprego bíblico, ou a crença à qual já se apegaram e para a qual procuram prova?”
Note que o autor descarta a possibilidade de outro sentido para o termo primogênito afirmando que os que o fazem prestigiam sua teologia e não as escrituras, pois, segundo ele, o termo primogênito nunca é usado nas escrituras nesse sentido. Todavia, essa afirmação não é verdadeira. Devemos ainda lembrar o leitor que o termo grego para primogênito é usado diversas vezes na Septuaginta e nem sempre é usada no sentido usual que o autor propõe. Por exemplo, em Gn.4.4 o termo é usado descrever a parte mais importante de um rebanho. Em Ex.4.22 o mesmo termo grego é usado, muito embora o sentido auferido descreva o relacionamento de Israel para com Deus. Em Ez.44.30 vemos a mesma idéia de Gn.4.4, que trata da parte mais importante de uma plantação que deveria ser ofertada aos sacerdotes. Mesmo no Novo Testamento vemos o texto de Hb.12.23 cujo o uso do mesmo termo é feito com diferente do proposto pelo autor da STV. Mas, devemos lembrar que, realizar essa análise e ignorar o modo como Paulo usa esse termo, de nada adianta, afinal, não procurarmos saber a definição de “primogênito”, mas o modo como Paulo usa o termo.
Por isso, observe que Paulo além de chamar a Cristo de “primogênito de toda criação” (v.15), também o chama de ”primogênito dentre os mortos” (v.18). Nesse momento percebemos que Paulo não está fazendo uso do termo do modo costumeiro, visto que ninguém poderia ser o primeiro nascido dentre os que morreram. Isso não faz qualquer sentido. Ao que o contexto (textual) de Cl.1.16 indica, o termo primogênito não está sendo utilizado no sentido q de filho que tem a primazia sobre a herança do Pai, conceito recorrente na teologia de Paulo (Rm.8.17; Gl.3.29; 4.7; cf. Hb.1.2).
Além disso, devemos lembrar que não encontramos no texto de Cl.1.16 nada que demonstre que o termo “toda criação” esteja em contraste com o termo primogênito. Ou seja, ainda que o significado do termo seguisse o modo usual defendido pela STV, não encontramos a mesma necessidade da inserção do termo “outras” como vemos nos textos usados como exemplo pelo autor. Portanto, concluímos que tal inserção é desnecessária e motivada por teologia.
O problema da interpretação proposta nesse parágrafo é sua contradição explícita com outro verso das escrituras, que na TNM é lido assim: “Todas as coisas vieram à existência por intermédio dele, e à parte dele nem mesmo uma só coisa veio à existência” (Jo.1.3). Observe que no desejo de defender Jesus como criatura, o autor acabou entrando em franca contradição com Jo.1.3 que diz que Jesus é o responsável pela existência de todas as coisas, e que SEM ELE nada do que existe veio à existência. Ou seja, se Jesus foi criado, segundo Jo.1.3, isso significa que Ele se criou, o que é impossível.
O grande mal de assumir que as inserções são de fato texto inspirados é construir teologia e ensinar baseado nessa inserção. Observe o que lemos na obra Estudo Perspicaz:
Jeová também mostrou amor ao conceder ao seu primeiro criado Filho espiritual o privilégio de participar com Ele em todas as demais obras criativas, tanto espirituais como materiais, fazendo generosamente com que este fato se tornasse conhecido, com a honra resultante para seu Filho. (Gên 1:26; Col 1:15-17) Assim, não receou tibiamente a possibilidade duma competição, mas, antes, demonstrou inteira confiança em sua própria Soberania legítima[3]
Observe que o texto já inicia com a declaração de que Cristo é criado e que foi convidado a criar as outras coisas, debaixo da autorização do Pai. Contudo, o fundamento para essa afirmação teológica, segundo esse autor, é o próprio texto de Cl.1.16. Ou seja, Jesus é criado e co-criador por que Cl.1.16 diz. Note que a distorção já não precisa ser analisada, apenas apresentada. Porém, vemos nessa afirmação a teológica ser construída sobre um termo que não faz parte do texto do apóstolo Paulo, mas trata-se de uma inserção da STV. Ou seja, mais uma vez o texto do apóstolo Paulo tem pouco valor, o que importa é a inserção e a promoção da teologia da STV. Os Testemunhas de Jeová que leram essa citação e abriram suas TNM para verificar as citações, entenderam que tal afirmação era verdadeira pois estava nas escrituras. Mal sabem eles que foi tal teologia que colocou tal idéia na TNM.
Portanto, devemos admitir que colocar o termo [outras] no texto de Cl.1.16 não é justificado pela gramática do texto, pela semântica do termo grego “pâs” no uso que é feito nesse texto, e que tal inclusão faz com que o significado do texto entre em conflito com outras passagens da escritura (Jo.1.3). Segue-se que não parece justificada a tentativa de chamar Jesus Cristo de um ser criado, por que a Bíblia ensina que Ele é Criador.

O Deus que Se recusa entrar na caixa



Existe uma expressão muito conhecida, especialmente entre os teólogos, que diz: “É impossível colocar Deus numa caixinha”. Com essa expressão, queremos dizer que Deus está tão além da compreensão humana, que é impossível propor uma definição que consiga exaurir todo o ser divino.
O problema é que na prática as coisas não funcionam de forma tão simples assim. Depois de passar anos debruçado sobre livros, respirando todos os ácaros das bibliotecas, dissecando as Escrituras nas línguas originais, e aprendendo todos os tipos de categorias teológicas, o teólogo começa achar que Deus é como aquela namorada que conhecemos muito bem. E por isso, ele conclui que pode definir com toda segurança a essência divina. Ele passa a crer que é um especialista em Deus, e que é capaz de explorar e definir a pessoa e o modus operandi divino. Entretanto, este indivíduo “cai do cavalo” quando Deus aparentemente contradiz o seu bairrismo teológico. Ele fica sem respostas quando seus credos não mais explicam, suas categorias não mais comportam e suas definições não mais resumem.
Jó, o personagem bíblico, e seus amigos teólogos sofrem desse mal. São indivíduos que diante de uma aparente incoerência divina, debatem, replicam, treplicam, mas o fato é que suas categorias teológicas não conseguem explicar o que está acontecendo na prática. Observemos com mais cuidado.
O livro de Jó nos apresenta um cenário em que tudo faz sentido, onde todas as categorias teológicas funcionam bem direitinho. Jó, um homem piedoso, justo e temente a Deus, goza abundância, prosperidade e felicidade. Do ponto de vista teológico, tudo bem! Afinal de contas, nada mais normal do que ver Deus abençoando um homem justo e piedoso.
Agora, o castelinho de cartas das categorias teológicas simplesmente desmorona, quando Deus decide sair da caixinha e permitir que as maiores atrocidades aconteçam na vida de um homem justo e piedoso. De repente, Jó perde a fortuna, filhos e a saúde. E agora, José? Como explicar um quadro como esse? Se Deus é bom, soberano e justo, por que ele permite tamanho mal? Por que existem crianças morrendo de fome na África? Por que pessoas piedosas morrem nas filas dos hospitais do SUS? Por que tsunamis e terremotos varrem países matando milhares de pessoas? E pior, por que Deus permite que o traficante, o político corrupto, o mafioso viva uma vida regalada, feliz e próspera? Por que o mundo é caótico e tudo parece fora dos eixos?
Diante deste quadro, todos os personagens do livro de Jó vestem a toga teológica e começam um debate, numa tentativa de colocar Deus de volta na caixinha. A mulher de Jó é uma teóloga epistemologicamente empiricista e conclui: “Deus é injusto”; Os três amigos de Jó são teólogos racionalistas e concluem: “Jó, você está sendo punido por Deus!”; Eliú, o amigo mais novo e aparentemente o mais centrado, baseado numa epistemologia um tanto existencialista, conclui: “Ei, velharada, vocês estão errados. Jó sofre porque Deus quer ensinar algo a ele”.
Depois que todos os teólogos debateram, que o dispensacionalista brigou com o aliancista, que o calvinista “quebrou o pau” com o arminiano, que o reformado cutucou o evangélico, e todos os tipos de categorias foram expostas e defendidas, Deus decide entrar na parada. E a resposta da parte de Deus pode ser resumida com a seguinte frase: “Estou pouco me lixando para suas categorias teológicas”.
Sim! O discurso divino não chega nem perto de ser considerado uma resposta aos questionamentos e categorizações do teólogo Jó. Deus não se preocupa em prestar contas e dar satisfações de todos os pormenores de seu governo. A “não-reposta” de Deus às interrogações da mente de Jó deve ser lida assim: “Amigo, a maneira como me conduzo e governo o universo não é da sua conta”. Robert Alter emThe Art of Biblical Poetry (Basic Books) sugere de forma brilhante que ao invés de responder os questionamentos de Jó, Deus sarcasticamente o questiona acerca da sua habilidade em produzir relâmpagos, fazer o sol nascer, derramar a chuva, estabelecer os limites dos oceanos, etc.
Além disso, Deus não somente se revela soberano sobre a criação, mas também sobre o caos (uma clara figura teológica para a ausência do bem). O “Beemote” (Jó 40.15 בהמות) e o “Leviatã” (Jó 41.1 לויתן) são símbolos do caos na literatura bíblica e cananita (ver John Day, God’s conflict with the Dragon and the Sea). Assim, Deus revela seu governo sobre o mundo e sobre todas as forças que são contrárias a ordem criada e estabelecida.
Embora não seja da alçada de Jó compreender todas as operações da justiça divina, ele é convidado a confiar no Criador da ordem, no Senhor das forças cósmicas, naquele que tem poder para suprimir o caos que invadiu sua vida e restaurar a ordem natural dos eventos de sua experiência.
Portanto, não é papel do teólogo tentar categorizar o ser divino ao tentar forçá-lo dentro de uma caixinha teológica. Simplesmente, porque Deus se recusa entrar na caixa. Sua tarefa é nada mais do que o privilégio de vislumbrar a majestade do Criador e deixar ser vencido por seu poder e soberania.

As duas religiões cristãs


Por Maurício Zágari

Tempos atrás eu ficava muito chateado quando alguém criticava o termo “religião”. Pois eu sempre entendi “religião” como algo bom, uma comunicação com Deus, um relacionamento pessoal com o Senhor – a partir da raiz latina “religare”. Por isso eu lia ou ouvia pessoas amaldiçoando a “religião” e aquilo me incomodava profundamente. Tenho lido alguns bons livros. Tenho tido algumas experiências. E hoje posso dizer que entendo os que criticam a “religião” e não me chateio mais. Na verdade, até concordo com eles e por uma simples razão: finalmente compreendi que, em nossos dias, o termo “religião” (e seus cognatos) ganhou dois significados diferentes. O fenômeno é igual ao que ocorre com palavras como “manga”, que pode se referir a uma fruta ou a um pedaço da minha camisa; como “casa”, que pode ser a construção onde moro ou o local onde prendemos o botão da calça; como “pena”, que pode ser “dó” ou uma parte da asa de um pássaro. Sim, atualmente, a mesma palavra, “religião”, também ganhou significados bem diferentes – um positivo e outro negativo. Vamos falar sobre eles.
Primeiro o positivo. Algum tempo atrás estava conversando com um amigo e ele usou uma metáfora muito interessante. Ao falar sobre pecado e restauração, usou a imagem do fio de algum aparelho eletrodoméstico que é arrancado da tomada. Isso é pecado. Deus é a fonte de energia, a fonte de vida, a tomada. Nós somos o eletrodoméstico. Enquanto estivermos ligados a Deus, “conectados à tomada”, fluirá dele para nós a “eletricidade”, a vida, aquilo que nos permite funcionar. Assim, do mesmo modo que uma televisão precisa estar ligada à tomada para ter razão de ser, para cumprir o propósito para o qual foi criada, para termos vida nós precisamos estar ligados ao Senhor. Só assim teremos razão de ser, cumpriremos o propósito para o qual fomos criados.
Portanto, quando pecamos, é como se nosso fio fosse arrancado da tomada. Perdemos a conexão. Não estamos mais ligados ao Pai. Por isso, precisamos nos re…ligar a Deus. Isto é, nos ligar novamente à fonte de vida. Religar. Essa é a origem do termo “religião”: vem do latim religare, que se refere a essa religação. Portanto, sempre que você ouvir falar de “religião” no sentido da “religação entre o pecador e Deus”, sorria! Esse é um bom significado. Essa é a boa religião. E não deve ser criticada ou amaldiçoada. Nesse sentido, “religiosa” é somente uma pessoa que foi reconectada a Cristo. E glória ao Senhor por isso: bendita a religião, que permitiu que a graça transformasse o pecador em um religioso.
Mas existe também o sentido negativo. Aos olhos de muitos, o termo perdeu o sentido original de “religação”. E hoje entendo isso. O exemplo maior do conceito negativo de “religião” está na parábola do bom samaritano. Sei que você já leu essa passagem milhares de vezes, mas o convido uma vez mais para dar atenção a esse relato, registrado em Lucas 10:

Religião3
“[Certo intérprete da Lei] perguntou a Jesus: Quem é o meu próximo? Jesus prosseguiu, dizendo: Certo homem descia de Jerusalém para Jericó e veio a cair em mãos de salteadores, os quais, depois de tudo lhe roubarem e lhe causarem muitos ferimentos, retiraram-se, deixando-o semimorto. Casualmente, descia um sacerdote por aquele mesmo caminho e, vendo-o, passou de largo. Semelhantemente, um levita descia por aquele lugar e, vendo-o, também passou de largo. Certo samaritano, que seguia o seu caminho, passou-lhe perto e, vendo-o, compadeceu-se dele. E, chegando-se, pensou-lhe os ferimentos, aplicando-lhes óleo e vinho; e, colocando-o sobre o seu próprio animal, levou-o para uma hospedaria e tratou dele. No dia seguinte, tirou dois denários e os entregou ao hospedeiro, dizendo: Cuida deste homem, e, se alguma coisa gastares a mais, eu to indenizarei quando voltar. Qual destes três te parece ter sido o próximo do homem que caiu nas mãos dos salteadores? Respondeu-lhe o intérprete da Lei: O que usou de misericórdia para com ele. Então, lhe disse: Vai e procede tu de igual modo.”

Repare: aquele sacerdote e aquele levita (que passaram ao largo, não deram a mínima para quem estava ali, caído, e foram cuidar da própria vida) são “religiosos” – no pior sentido. Eles cumprem tudo o que a religiosidade estipula, obedecem as normas do eclesiasticismo (não procure essa palavra no dicionário, é um neologismo meu)… enfim, aos olhos dos homens aquele sacerdote e aquele levita são servos corretíssimos de Deus. Seguem a cartilha da fé ao pé da letra. Só que tem um porém: em seu coração eles não amam o próximo. Isso é o sentido negativo que o conceito de “religião” ganhou em nossos dias: é o estilo de vida de quem exteriormente é o supra sumo da espiritualidade, mas por dentro é cheio de desamor. É exatamente o que Jesus chamou de um “sepulcro caiado”. Pois Jesus define o “sepulcro caiado” como alguém que parece justo por fora mas por dentro está cheio de hipocrisia e maldade – o que, pelo meu entendimento, é resultado direto da falta de amor.

Tiago 1.27 diz: “A religião pura e sem mácula, para com o nosso Deus e Pai, é esta: visitar os órfãos e as viúvas nas suas tribulações e a si mesmo guardar-se incontaminado do mundo”. A palavra, no original grego, traduzida aqui por “religião”, é thrēskeia, que tem exatamente o sentido do cumprimento de práticas litúrgicas, de normas e regras ditadas pela fé, de observâncias cerimoniais. O irmão de Jesus estava fazendo uma alusão direta aos fariseus e outros mestres da Lei, explicando que tudo aquilo que eles cumpriam como parte de sua religiosidade (rituais, obediência à Lei, liturgias, cumprimento de festas e sábados e tudo o mais) era inútil se eles não tivessem amor pelo próximo. E não só amor como sentimento, mas amor demonstrado de forma prática. Pois era tão importante buscar a santidade e fugir da contaminação do pecado como esforçar-se e sacrificar-se pelo bem-estar do próximo – como fruto do amor.
Religião no sentido da “religação” com Deus é algo bom, imprescindível e, mais do que tudo, é um privilegio concedido por Cristo a nós. Quando ele morreu na cruz e o véu do templo se rasgou, o que aquilo quis dizer foi: “Não há mais impedimentos, você pode se ligar diretamente ao Pai”. Por outro lado, religião no sentido de viver uma vida de práticas, cumprimento a regras e obediência aos mandamentos bíblicos mas sem demonstração de amor ao próximo é o que há de mais nefasto. Os samaritanos não faziam nada do que os sacerdotes judeus faziam em termos litúrgicos, mas foi precisamente o gesto de amor do samaritano pelo próximo que lhe rendeu elogios de Cristo. Não foi ter ido ao culto, evangelizado, louvado da forma “certa”, pregado um bom sermão, seguido as liturgias e datas santas…nada disso. Fazer essas coisas é ótimo – e devemos fazer – mas não foi isso o que fez Jesus destacar a atitude do samaritano. O sacerdote cumpria a cartilha da fé ao pé da letra, mas deixou o próximo pra lá e foi cuidar da própria vida e tratar dos próprios interesses. E esse, aos olhos de Jesus, é “raça de víboras”.

Os elogios de Jesus foram pelo amor demonstrado ao próximo.

Que Deus nos livre de nos tornarmos “religiosos” no mau sentido. Se cumprirmos tudo o que a cartilha do crente determina mas nosso coração não tiver amor pelo próximo… estamos mal na fita. Peço ao Senhor que nos amemos uns aos outros de fato. Que haja mais pregações sobre isso. Que se cante mais sobre isso. É simples, não exige grandes teologias: amar o próximo é fazer por ele o que gostaríamos que fizessem a nós. Uma criança entende o conceito.
Deus queira que nunca aconteça com você. Mas, se um dia ocorrer de você estar caído, ferido, à beira da estrada, peça ao Senhor que passe por ali o religioso que foi religado a Deus e não o religioso que só cumpre os eclesiasticismos. Senão, meu irmão, minha irmã, você ficará jogado às traças, à chuva e ao desamor de gente que diz amar a Deus mas deixa você caído à beira do caminho, implorando por socorro.
Mais do que isso: que o religioso que deixa os outros largados para lá nunca sejamos você e eu. Pois, se formos assim… que Deus tenha misericórdia de nós.

Paz a todos vocês que estão em Cristo,
Mauricio