sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

O grande ‘sim’ de Deus

 
Por Maurício Zágari
Quem olha de fora, lê slogans como “Pare de sofrer” e “Uma igreja que faz vencedores” deve achar que a vida do cristão é muito fácil. Afinal, em nosso triunfalismo, parece que servir Cristo é um grande carnaval, uma festa eterna, uma chuva de bênçãos. Prosperidade é o tom do momento. Alegria todo dia. Viver feliz da vida. E é o que a Bíblia diz, não é? Em  Marcos 8.34, por exemplo, lemos as palavras de Jesus: “Então, convocando a multidão e juntamente os seus discípulos, disse-lhes: Se alguém quer vir após mim, a si mesmo se negue, tome a sua cruz e siga-me”. Opa. Espere um pouco. Tem algo estranho aí. Negar a si mesmo? Tomar sua cruz? Isso soa como algo sacrificante. Parece ter a ver com abrir mão de coisas que nos são importantes. Negar-se significa dizer “não” para si mesmo. Então, se quisermos viver com Jesus Ele deixa claro que vamos ter de dizer “não” para o espelho. Mas… como assim? Em quê? O que afinal é esse “negar-se”, apontado por Jesus como o centro do alvo?

Em primeiro lugar, é dizer não para os prazeres do mundo. “Sabe, porém, isto: nos últimos dias, sobrevirão tempos difíceis, pois os homens serão egoístas, avarentos, jactanciosos, arrogantes, blasfemadores, desobedientes aos pais, ingratos, irreverentes, desafeiçoados, implacáveis, caluniadores, sem domínio de si, cruéis, inimigos do bem, traidores, atrevidos, enfatuados, mais amigos dos prazeres que amigos de Deus” (2 Tm 3.1-4).  

“Pedis e não recebeis, porque pedis mal, para esbanjardes em vossos prazeres” (Tg 4.3).  
“De onde procedem guerras e contendas que há entre vós? De onde, senão dos prazeres que militam na vossa carne?” (Tg 4.1).

Essas e outras passagens deixam claro que os prazeres deste mundo não coadunam com o gozo eterno. Que dificuldade! Admitamos, como é difícil abrir mão das nossas vaidades e nossos benefícios em prol de uma esperança que não vemos! Nós, humanos, buscamos instintivamente o que nos dá prazer. Comemos doces e coisas gordurosas sabendo que nos fazem mal. Mas é tão gostoso! Só que é tão nocivo… Portanto, a Bíblia é clara: para andar no Caminho estreito que leva à Porta estreita é preciso caminhar na contramão de nós mesmos e de nossas concupiscências.

Dizer “não” para si mesmo também significa soltar as rédeas de nossa vida e confiar que Deus a está levando para o lugar certo. É abrir mão de planos pessoais, conformar-se com os rumos indesejados que o Senhor dá a nosso futuro, é lançar-se no vazio tendo a certeza de que o Criador está no controle. “Entrega o teu caminho ao SENHOR, confia nele, e o mais ele fará. Fará sobressair a tua justiça como a luz e o teu direito, como o sol ao meio-dia. Descansa no SENHOR e espera nele, não te irrites por causa do homem que prospera em seu caminho, por causa do que leva a cabo os seus maus desígnios” (Salmos 37.5-7). Entregar nosso caminho ao Senhor… que coisa difícil para seres tão independentes como nós. Mas é preciso, pois a promessa é que, se o fizermos, confiando, o mais o Todo-Poderoso fará.

Negar-se a si mesmo também implica em dizer não para antigas prioridades e atitudes. É deixar de lado uma carreira bem remunerada no meio secular para devotar seu tempo às coisas de Deus. É abrir mão de um relacionamento afetivo com um não cristão por saber que o jugo desigual desagrada Cristo. É perder o emprego por recusar-se a fazer algo antiético que lhe é exigido. Negar-se é, em outras palavras, priorizar Cristo em tudo: “Quem ama seu pai ou sua mãe mais do que a mim não é digno de mim; quem ama seu filho ou sua filha mais do que a mim não é digno de mim;  e quem não toma a sua cruz e não me segue, não é digno de mim.  Quem acha a sua vida a perderá, e quem perde a sua vida por minha causa a encontrará” (Mateus 10.37-40).

Negar-se a si mesmo é também engolir o orgulho e reconhecer o erro. É saber dizer não para o amor-próprio e admitir que pecou. E então ter a humildade de abaixar a cabeça, ralar os joelhos e deixar seu pedido de perdão sair pelos olhos e por urros de contrição. Quando o amor-próprio é maior do que a capacidade de reconhecer o pecado diante de Deus, confessá-lo e abandoná-lo é sinal que estamos a anos-luz de distância de negar-nos a nós mesmos. “Quem esconde os seus pecados não prospera, mas quem os confessa e os abandona encontra misericórdia” (Provérbios 28.13).

Negar-se a si mesmo é também pôr o outro acima de si. É preferir o outro em honra, mesmo sabendo que ele é menos capaz, correto, digno ou santo do que você. É dar a outra face para quem não merece. É abençoar os que te perseguem, alegrar-se com os que se alegram, chorar com os que choram, não tornar a ninguém mal por mal; não se vingar a si mesmo. E, se o teu inimigo tiver fome, dar-lhe de comer; se tiver sede, dar-lhe de beber; é não se deixar vencer do mal, mas vencer o mal com o bem; é amar os inimigos, fazer o bem aos que nos odeiam; bendizer os que nos maldizem, orar pelos que nos caluniam; ao que te bater numa face, oferecer-lhe também a outra; e, ao que tirar a capa, deixá-lo levar também a túnica.

Isso tudo é difícil até a medula. Mas se não vivo mais eu, mas Cristo vive em mim… temos que viver conforme a natureza dele.

Você nunca vai me ouvir dizer que ser cristão é fácil. Não é. Quem prega isso está mentindo. Pois quem em sã consciência diria que tomar uma cruz é fácil? Arrastar um tronco de mais de 90 quilos por quilômetros é tarefa para leão. Não, negar-se a si mesmo, tomar sua cruz e seguir nos passos do Mestre é doloroso, sacrificante, mortificante.

Muitos, ao lerem isso, poderiam então se perguntar: mas se a vida do cristão significa tanta abnegação e sofrimento, por que seguir Cristo? Eu respondo: porque o que importa não é a vida do cristão, é a morte. Pois, depois que tivermos de nos dizer “não” tantas vezes, nos depararemos com a realidade de que “Nem olhos viram, nem ouvidos ouviram, nem jamais penetrou em coração humano o que Deus tem preparado para aqueles que o amam” (1 Co 2.9).

Vale a pena dizer “não” a si mesmo nesta vida e o fazemos com prazer, se conseguimos enxergar essa suprema verdade do Evangelho: que a vida eterna é o grande “sim” de Deus para cada um de seus eleitos.

Paz a todos vocês que estão em Cristo,
Maurício

Seguindo a Deus de Perto


“A minha alma apega-se a ti: a tua destra me ampara” (Sl 63:8.).

Por A. W. Tozer

O evangelho nos ensina a doutrina da graça preveniente, que significa simplesmente que, antes de um homem poder buscar a Deus, Deus tem que buscá-lo primeiro.

Para que o pecador tenha uma idéia correta a respeito de Deus, deve receber antes um toque esclarecedor em seu íntimo; que, mesmo que seja imperfeito, não deixa de ser verdadeiro, e é o que desperta nele essa fome espiritual que o leva à oração e à busca.

Procuramos a Deus porque, e somente porque, Ele primeiramente colocou em nós o anseio que nos lança nessa busca. “Ninguém pode vir a mim”, disse o Senhor Jesus, “se o Pai que me enviou não o trouxer” (Jo 6:44), e é justamente através desse trazer preveniente, que Deus tira de nós todo vestígio de mérito pelo ato de nos achegarmos a Ele. O impulso de buscar a Deus origina-se em Deus, mas a realização do impulso depende de O seguirmos de todo o coração. E durante todo o tempo em que O buscamos, já estamos em Sua mão: “... o Senhor o segura pela mão” (Sl 37:24.).

Nesse “amparo” divino e no ato humano de “apegar-se” não há contradição. Tudo provém de Deus, pois, segundo afirma Von Hügel, Deus é sempre a causa primeira. Na prática, entretanto (isto é, quando a operação prévia de Deus se combina com uma reação positiva do homem), cabe ao homem a iniciativa de buscar a Deus. De nossa parte deve haver uma participação positiva, para que essa atração divina possa produzir resultados em termos de uma experiência pessoal com Deus. Isso transparece na calorosa linguagem que expressa o sentimento pessoal do salmista no Salmo 42: “Como suspira a corça pelas correntes das águas, assim, por ti, ó Deus, suspira a minha alma. A minha alma tem sede de Deus, do Deus vivo: quando irei e me verei perante a face de Deus?” E um apelo que parte do mais profundo da alma, e qualquer coração anelante pode muito bem entendê-lo.

A doutrina da justificação pela fé — uma verdade bíblica, e uma bênção que nos liberta do legalismo estéril e de um inútil esforço próprio — em nosso tempo tem-se degenerado bastante, e muitos lhe dão uma interpretação que acaba se constituindo um obstáculo para que o homem chegue a um conhecimento verdadeiro de Deus. O milagre do novo nascimento está sendo entendido como um processo mecânico e sem vida. Parece que o exercício da fé já não abala a estrutura moral do homem, nem modifica a sua velha natureza. É como se ele pudesse aceitar a Cristo sem que, em seu coração, surgisse um genuíno amor pelo Salvador. Contudo, o homem que não tem fome nem sede de Deus pode estar salvo? No entanto, é exatamente nesse sentido que ele é orientado: conformar-se com uma transformação apenas superficial.

Os cientistas modernos perderam Deus de vista, em meio às maravilhas da criação; nós, os crentes, corremos o perigo de perdermos Deus de vista em meio às maravilhas da Sua Palavra. Andamos quase inteiramente esquecidos de que Deus é uma pessoa, e que, por isso, devemos cultivar nossa comunhão com Ele como cultivamos nosso companheirismo com qualquer outra pessoa. É parte inerente de nossa personalidade conhecer outras personalidades, mas ninguém pode chegar a um conhecimento pleno de outrem através de um encontro apenas. Somente após uma prolongada e afetuosa convivência é que dois seres podem avaliar mutuamente sua capacidade total.

Todo contato social entre os seres humanos consiste de um reconhecimento de uma personalidade para com outra, e varia desde um esbarrão casual entre dois homens, até a comunhão mais íntima de que é capaz a alma humana. O sentimento religioso consiste, em sua essência, numa reação favorável das personalidades criadas, para com a Personalidade Criadora, Deus. “E a vida eterna é esta: que te conheçam a ti, o único Deus verdadeiro, e a Jesus Cristo, a quem enviaste".

Deus é uma pessoa, e nas profundezas de Sua poderosa natureza Ele pensa, deseja, tem gozo, sente, ama, quer e sofre, como qualquer outra pessoa. Em seu relacionamento conosco, Ele se mantém fiel a esse padrão de comportamento da personalidade. Ele se comunica conosco por meio de nossa mente, vontade e emoções.

O cerne da mensagem do Novo Testamento é a comunhão entre Deus e a alma remida, manifestada em um livre e constante intercâmbio de amor e pensamento.

Esse intercâmbio, entre Deus e a alma, pode ser constatado pela percepção consciente do crente. É uma experiência pessoal, isto é, não vem através da igreja, como Corpo, mas precisa ser vivida, por cada membro. Depois, em conseqüência dele, todo o Corpo será abençoado. E é uma experiência consciente: isto é, não se situa no campo do subconsciente, nem ocorre sem a participação da alma (como, por exemplo, segundo alguns imaginam, se dá com o batismo infantil), mas é perfeitamente perceptível, de modo que o homem pode “conhecer” essa experiência, assim como pode conhecer qualquer outro fato experimental.

Nós somos em miniatura, (excetuando os nossos pecados) aquilo que Deus é em forma infinita. Tendo sido feitos a Sua imagem, temos dentro de nós a capacidade de conhecê-lO. Enquanto em pecado, falta-nos tão-somente o poder. Mas, a partir do momento em que o Espírito nos revivifica, dando-nos uma vida regenerada, todo o nosso ser passa a gozar de afinidade com Deus, mostrando-se exultante e grato. Isso é este nascer do Espírito sem o qual não podemos ver o reino de Deus. Entretanto, isso não é o fim, mas apenas o começo, pois é a partir daí que o nosso coração inicia o glorioso caminho da busca, que consiste em penetrar nas infinitas riquezas de Deus. Posso dizer que começamos neste ponto, mas digo também que homem nenhum já chegou ao final dessa exploração, pois os mistérios da Trindade são tão grandes e insondáveis que não têm limite nem fim.

Encontrar-se com o Senhor, e mesmo assim continuar a buscá-lO, é o paradoxo da alma que ama a Deus. É um sentimento desconhecido daqueles que se satisfazem com pouco, mas comprovado na experiência de alguns filhos de Deus que têm o coração abrasado. Se examinarmos a vida de grandes homens e mulheres de Deus, do passado, logo sentiremos o calor com que buscavam ao Senhor. Choravam por Ele, oravam, lutavam e buscavam-nO dia e noite, a tempo e fora do tempo, e, ao encontrá-lO, a comunhão parecia mais doce, após a longa busca. Moisés usou o fato de que conhecia a Deus como argumento para conhecê-lO ainda melhor. “Agora, pois, se achei graça aos teus olhos, rogo-te que me faças saber neste momento o Teu caminho, para que eu Te conheça, e ache graça aos Teus olhos” (Ex 33:13). E, partindo daí, fez um pedido ainda mais ousado: “Rogo-te que me mostres a tua glória” (Ex 33:18). Deus ficou verdadeiramente alegre com essa demonstração de ardor e, no dia seguinte, chamou Moisés ao monte, e ali, em solene cortejo, fez toda a Sua glória passar diante dele.

A vida de Davi foi uma contínua ânsia espiritual. Em todos os seus salmos ecoa o clamor de uma alma anelante, seguido pelo brado de regozijo daquele que é atendido. Paulo confessou que a mola-mestra de sua vida era o seu intenso desejo de conhecer a Cristo mais e mais. “Para O conhecer” (Fp 3:10), era o objetivo de seu viver, e para alcançar isso, sacrificou todas as outras coisas. “Sim, deveras considero tudo como perda, por causa da sublimidade do conhecimento de Cristo Jesus meu Senhor: por amor do qual perdi todas as cousas e as considero como refugo, para ganhar a Cristo” (Fp 3:8).

Muitos hinos evangélicos revelam este anelo da alma por Deus, embora a pessoa que canta, já saiba que o encontrou. Há apenas uma geração, nossos antepassados cantavam o hino que dizia: “Verei e seguirei o Seu caminho”; hoje não o ouvimos mais entre os cristãos. É uma tragédia que, nesta época de trevas, deixemos só para os pastores e líderes a busca de uma comunhão mais íntima com Deus. Agora, tudo se resume num ato inicial de “aceitar” a Cristo (a propósito, esta palavra não é encontrada na Bíblia), e daí por diante não se espera que o convertido almeje qualquer outra revelação de Deus para a sua alma. Estamos sendo confundidos por uma lógica espúria que argumenta que, se já encontramos o Senhor, não temos mais necessidade de buscá-lO. Esse conceito nos é apresentado como sendo o mais ortodoxo, e muitos não aceitariam a hipótese de que um crente instruído na Palavra pudesse crer de outra forma. Assim sendo, todas as palavras de testemunho da Igreja que significam adoração, busca e louvor, são friamente postas de lado. A doutrina que fala de uma experiência do coração, aceita pelo grande contingente dos santos que possuíam o bom perfume de Cristo, hoje é substituída por uma interpretação superficial das Escrituras, que sem dúvida soaria como muito estranha para Agostinho, Rutherford ou Brainerd.

Em meio a toda essa frieza existem ainda alguns — alegro-me em reconhecer — que jamais se contentarão com essa lógica superficial. Talvez até reconheçam a força do argumento, mas depois saem em lágrimas à procura de algum lugar isolado, a fim de orarem: “Ó Deus, mostra-me a tua glória”. Querem provar, ver com os olhos do íntimo, quão maravilhoso Deus é.

É meu propósito instilar nos leitores um anseio mais profundo pela presença de Deus. É justamente a ausência desse anseio que nos tem conduzido a esse baixo nível espiritual que presenciamos em nossos dias. Uma vida cristã estagnada e infrutífera é resultado da ausência de uma sede maior de comunhão com Deus. A complacência é inimigo mortal do crescimento cristão. Se não existir um desejo profundo de comunhão, não haverá manifestação de Cristo para o Seu povo. Ele espera que o procuremos. Infelizmente, no caso de muitos crentes, é em vão que essa espera se prolonga.

Cada época tem suas próprias características. Neste exato instante encontramo-nos em um período de grande complexidade religiosa. A simplicidade existente em Cristo raramente se acha entre nós. Em lugar disso, vêem-se apenas programas, métodos, organizações e um mundo de atividades animadas, que ocupam tempo e atenção, mas que jamais podem satisfazer à fome da alma. A superficialidade de nossas experiências íntimas, a forma vazia de nossa adoração, e aquela servil imitação do mundo, que caracterizam nossos métodos promocionais, tudo testifica que nós, em nossos dias, conhecemos a Deus apenas imperfeitamente, e que raramente experimentamos a Sua paz.

Se desejamos encontrar a Deus em meio a todas as exteriorizações religiosas, primeiramente temos que resolver buscá-Lo, e daí por diante prosseguir no caminho da simplicidade. Agora, como sempre o fez, Deus revela-Se aos pequeninos e se oculta daqueles que são sábios e prudentes aos seus próprios olhos. É mister que simplifiquemos nossa maneira de nos aproximar dEle. Urge que fiquemos tão-somente com o que é essencial (e felizmente, bem poucas coisas são essenciais). Devemos deixar de lado todo esforço para impressioná-lO e ir a Deus com a singeleza de coração da criança. Se agirmos dessa forma, Deus nos responderá sem demora.

Não importa o que a Igreja e as outras religiões digam. Na realidade, o que precisamos é de Deus mesmo. O hábito condenável de buscar “a Deus e” é que nos impede de encontrar ao Senhor na plenitude de Sua revelação. É no conectivo “e” que reside toda a nossa dificuldade. Se omitíssemos esse “e”, em breve acharíamos o Senhor e nEle encontraríamos aquilo por que intimamente sempre anelamos. Não precisamos temer que, se visarmos tão-somente a comunhão com Deus, estejamos limitando nossa vida ou inibindo os impulsos naturais do coração. O oposto é que é verdade. Convém-nos perfeitamente fazer de Deus o nosso tudo, concentrando-nos nEle, e sacrificando tudo por causa dEle.

O autor do estranho e antigo clássico inglês, The Cloud of Unknowing (A nuvem do desconhecimento), dá-nos instruções de como conseguir isso. Diz ele: “Eleve seu coração a Deus num impulso de amor; busque a Ele, e não Suas bênçãos. Daí por diante, rejeite qualquer pensamento que não esteja relacionado com Deus. E assim não faça nada com sua própria capacidade, nem segundo a sua vontade, mas somente de acordo com Deus. Para Deus, esse é o mais agradável exercício espiritual”.

Em outro trecho, o mesmo autor recomenda que, em nossas orações, nos despojemos de todo o empecilho, até mesmo de nosso conhecimento teológico. “Pois lhe basta a intenção de dirigir-se a Deus, sem qualquer outro motivo além da pessoa dEle.” Não obstante, sob todos os seus pensamentos, aparece o alicerce firme da verdade neotestamentária, porquanto explica o autor que, ao referir-se a “ele”, tem em vista “Deus que o criou, resgatou, e que, em Sua graça, o chamou para aquilo que você agora é”. Este autor defende vigorosamente a simplicidade total: “Se desejamos ver a religião cristã resumida em uma única palavra, para assim compreendermos melhor o seu alcance, então tomemos uma palavra de uma sílaba ou duas. Quanto mais curta a palavra, melhor será, pois uma palavra menor está mais de acordo com a simplicidade que caracteriza toda a operação do Espírito. Tal palavra deve ser ou Deus ou Amor”.

Quando o Senhor dividiu a terra de Canaã entre as tribos de Israel, a de Levi não recebeu partilha alguma. Deus disse-lhe simplesmente: “Eu sou a tua porção e a tua herança no meio dos filhos de Israel” (Nm 18:20), e com essas palavras tornou-a mais rica que todas as suas tribos irmãs, mais rica que todos os reis e rajás que já viveram neste mundo. E em tudo isto transparece um princípio espiritual, um princípio que continua em vigor para todo sacerdote do Deus Altíssimo.

O homem, cujo tesouro é o Senhor, tem todas as coisas concentradas nEle. Outros tesouros comuns talvez lhe sejam negados, mas mesmo que lhe seja permitido desfrutar deles, o usufruto de tais coisas será tão diluído que nunca é necessário à sua felicidade. E se lhe acontecer de vê-los desaparecer, um por um, provavelmente não experimentará sensação de perda, pois conta com a fonte, com a origem de todas as coisas, em Deus, em quem encontra toda satisfação, todo prazer e todo deleite. Não se importa com a perda, já que, em realidade nada perdeu, e possui tudo em uma pessoa — Deus — de maneira pura, legítima e eterna.

Ó Deus, tenho provado da Tua bondade, e se ela me satisfaz, também aumenta minha sede de experimentar ainda mais. Estou perfeitamente consciente de que necessito de mais graça. Envergonho-me de não possuir uma fome maior. Ó Deus, ó Deus trino, quero buscar-Te mais; quero buscar apenas a Ti; tenho sede de tornar-me mais sedento ainda. Mostra-me a Tua glória, rogo-Te, para que assim possa conhecer-Te verdadeiramente. Por Tua misericórdia, começa em meu íntimo uma nova operação de amor. Diz à minha alma: “Levanta-te, querida minha, formosa minha, e vem” (Ct 2:10). E dá-me graça para que me levante e te siga, saindo deste vale escuro onde estou vagueando há tanto tempo. Em nome de Jesus. Amém.

A Fé que Salva


Por Solano Portela

O movimento histórico conhecido como a Reforma do Século 16 ocorreu há quase 500 anos, iniciado quando Martinho Lutero, em 31 de outubro de 1517, pregou 95 teses, ou declarações, na porta da catedral de Wittenberg, que pastoreava. Lutero foi um homem que atravessou uma profunda experiência de conversão, pela qual teve os olhos abertos à simplicidade dos ensinamentos contidos na Bíblia. Comparando esses ensinamentos com o que era pregado e praticado na igreja dos seus dias, Lutero encontrou diferenças marcantes. Ele verificou como, ao longo do tempo, distorções haviam sido introduzidas, de tal forma que o povo era conservado em ignorância espiritual, privado das verdades reveladas na Palavra de Deus que podem levar à salvação. Os reformadores (Lutero e os que se seguiram a ele) procuraram resgatar a mensagem que salva e que pode levar os homens de volta ao seu destino original, reconciliando pecadores com o Deus santo que rege os céus e a terra.
Os historiadores têm, normalmente, identificado quatro pilares da Reforma do Século 16. Quatro temas principais que dominaram os escritos e ensinamentos dos reformadores, por serem essenciais à propagação da sã doutrina. Esses “pilares” são normalmente identificados por palavras latinas, não tão difíceis de compreender: Sola Scriptura, Sola Gratia, Sola Fide e Solus Christus. Vamos identificar esses significados e ver a relação deles, um para com os outros, bem como a razão da Reforma ter se concentrado nesses temas.
Sola Scriptura, significando que somente as Escrituras providenciam a fonte do nosso conhecimento religioso, das coisas espirituais cujo conhecimento é essencial à compreensão da vida. Essa era uma ênfase necessária, pois a igreja havia incorporado muitas doutrinas que não procediam da Bíblia, mas meramente de tradições humanas. Questões tais como culto às imagens, a existência do purgatório, etc., faziam parte das doutrinas ensinadas ao povo. Os reformadores, investigaram e deram um sonoro “não” a esse ensino e à consideração da “tradição” como fonte de autoridade igual ou superior à Palavra de Deus. Eles consideraram, corretamente, que isso era mortal para a saúde espiritual de qualquer um e da própria igreja.
Sola Gratia, significando que somente a Graça de Deus é a origem da nossa salvação. Na época da reforma, e mesmo nos nossos dias a tendência humana é a de exaltar a habilidade humana de salvar-se a si mesmo. Os reformadores apontaram que a Bíblia indica sem sombra de dúvidas que somente a graça de Deus, o favor não merecido da parte dele, origina um meio de salvação. Estamos todos mortos em delitos e pecados e, conseqüentemente, nada podemos fazer para nossa própria salvação. A iniciativa, de providenciar um plano de salvação, é de Deus e dele procedem todas as providências, nesse sentido.
Sola Fide, significando que somente a Fé é o meio pelo qual nos apropriamos da salvação efetivada por Cristo Jesus para o seu povo. Se a iniciativa da salvação é a graça de Deus, a Fé representa a resposta a essa iniciativa. Essa ênfase, extraída da Bíblia, era muito necessária, pois enfatizava-se as ações humanas como forma de se adquirir a salvação. Vendiam-se indulgências – pedaços de papel que, segundo os vendedores, representavam uma espécie de passaporte para o céu. Quanto mais se contribuía, mais certeza se obtinha, diziam eles, do perdão de pecados – do próprio comprador ou de parentes ou amigos que desejava beneficiar. Lutero e os demais reformadores, não encontraram qualquer base para esses ensinamentos nas Escrituras. Eles identificaram a Fé como sendo a resposta humana, provocada pelo toque regenerador do Espírito Santo de Deus, no processo de salvação.
Solus Christus, significando que somente Cristo é a base da nossa salvação. Somos salvos somente pelos méritos e pelo sacrifício de Cristo e não com base em qualquer outra situação ou ação humana. Cristo é o nosso único intermediário – assim a Bíblia especifica – e isso contrasta com tudo o que se ensinava, e ainda se ensina, relacionado com a intermediação de Maria e de outros “santos”.
Além dos “quatro pilares”, acima explicados, adiciona-se normalmente mais um: Soli Deo Gloria– Glória a Deus somente, significando o propósito da existência de nossas pessoas e de tudo o que temos ao nosso redor. Essa ênfase, igualmente bíblica, foi surgindo com o trabalho dos reformadores que se seguiram a Lutero, especialmente com o de João Calvino, que ensinou a doutrina da vocação – o chamado de Deus para que nos envolvamos em todos os aspectos da vida, sempre centralizando nossas ações na glória que é devida a Deus. Deus fez todas as coisas para sua própria glória e nos enquadramos em nossa finalidade e encontramos a felicidade quando abraçamos esse ensino em nossas vidas.

No meio desses pontos cardeais, dessas ênfases centrais nas doutrinas bíblicas, é interessante notarmos que Martinho Lutero considerava a questão da fé: Sola Fide – Somente a Fé, como sendo aquela ênfase crucial, que devia ser propagada e defendida a qualquer custo. Obviamente que, para ele, todas as demais eram importantes, mas com a questão da fé – como único e exclusivo meio pelo qual nos apropriamos da salvação – ele tinha um cuidado todo especial. Possivelmente isso ocorreu porque foi estudando a doutrina da fé que ele foi atingido pela contundência da mensagem divina de salvação. Lutero, atribulado porque estava acostumado a ouvir a pregação das indulgências, ou a validade de relíquias e amuletos, como meios de se tornar agradável a Deus, identificou-se como “um pecador perante Deus com a consciência atribulada”. Ele estudava a carta de Paulo aos Romanos, mais especificamente o capítulo 3, quando se deparou com a declaração: “o justo viverá pela fé”, no verso 28. Lutero escreveu o seguinte: “...então eu compreendi que a justiça de Deus é o fundamento de direito pelo qual, pela graça e pela misericórdia, ele nos justifica através da fé. Imediatamente eu me senti como se tivesse atravessado uma porta aberta e penetrado no paraíso”.

Assim, a justificação pela fé passou a ser uma das doutrinas centrais dos que abraçaram a fé reformada, que ficaram historicamente conhecidos como “protestantes”. Lutero escreveu, ainda: “esta doutrina é a principal e a angular. Somente ela gera, nutre, constrói, preserva e defende a igreja de Deus; sem ela a igreja de Deus não sobreviverá por uma hora”. O ensinamento bíblico, principalmente contido no terceiro capítulo de Romanos, sobre a justificação pela fé, não significa que nós somos considerados justos com base na fé. A base de nossa justificação é Cristo e o seu sacrifício na cruz, com a subseqüente vitória da morte, obtida em sua ressurreição. Somos salvos, portanto, pela Graça de Deus, por meio da fé, com base no trabalho de Cristo. Explicando o que é justificação, João Calvino nos ensina que ela “consiste no perdão dos pecados e na imputação da justiça de Cristo”. Uma das expressões que ele utiliza, é a de que os cristãos são “inseridos na justiça de Cristo”. Ou seja, não temos justiça própria, mas recebemos a justiça de Cristo sobre nós.

Na carta de Paulo aos Efésios (capítulo 2, versos 8 a 10), lemos: “Porque pela graça sois salvos, mediante a fé; e isto não vem de vós; é dom de Deus; não de obras, para que ninguém se glorie. Pois somos feitura dele, criados em Cristo Jesus para boas obras, as quais Deus de antemão preparou para que andássemos nelas”. A fé, aqui mencionada, é essa fé que salva. Aprendemos, nestes versos, que somos salvos somente pela graça proveniente de um Deus soberano. A fé, é o meio – “mediante a fé”. Mas note que não temos qualquer razão ou motivo de nos orgulharmos de termos exercitados fé. Nem temos qualquer prerrogativa ou direitos perante Deus. Somente exercemos a fé, porque ela é dom de Deus. Ele é que nos concede esse meio de resposta ao seu toque salvador. Aprendemos, também, que a salvação não vem das obras – não podemos nos orgulhar, ou nos gloriar, das nossas ações, pois elas não levam à salvação. No entanto, somos instruídos sobre o verdadeiro relacionamento entre graça, fé e obras (ações). Não existe graça verdadeira, sem a respectiva fé que salva. Não existe fé salvadora, sem as evidências dessa salvação, dessa transformação de vida – as obras, as ações de mérito, representadas pelo cumprimento dos mandamentos e das diretrizes divinas contidas nas Escrituras e que existem “para que andemos nelas”.

Essa é a fé que salva. A fé que não é simplesmente uma manifestação mística em algumas coisas. Muitos têm fé sincera em objetos que não podem salvar – em ídolos, em ritos de umbanda, em espíritos desencarnados. Mesmo em sinceridade, essa fé leva à perdição. Somente a fé em Cristo Jesus é fé salvadora (Atos 4.12: “E não há salvação em nenhum outro; porque abaixo do céu não existe nenhum outro nome, dado entre os homens, pelo qual importa que sejamos salvos”). A fé que salva é conseqüência natural da graça. A fé que salva não é incompatível com as obras, mas as obras são uma conseqüência necessária a essa fé. Há quase 500 anos os reformadores entenderam isso e resgataram essa doutrina que não estava sendo ensinada e se encontrava velada debaixo do entulho de tradição humana que a havia soterrado. Você entende que essa fé é o único meio para a sua salvação?

Interprete: Você morreria por doutrina?


Por Matthew Barrett
Deus, abra os olhos do rei da Inglaterra! Essas foram as últimas palavras de William Tyndale (1494-1536) numa sexta-feira, 16 de outubro de 1536, pouco antes de ser estrangulado e queimado. Alguém pode pensar que Tyndale foi queimado por ser um cristão, por professar fé em Jesus Cristo. Entretanto, você estaria enganado. Tyndale foi martirizado por rejeitar o papado e por insistir em traduzir a Bíblia para o vernáculo comum. Como Tyndale havia proclamado, “Eu desafio o papa, e suas leis;e, se Deus me livrar, eu irei um dia fazer que o garoto que anda em qualquer carroça aqui na Inglaterra saiba mais de Bíblia do que o próprio papa!” Caso você não esteja chocado pelo derramamento de sangue de Tyndale, deixe-me enfatizar isso mais uma vez: Tyndale não morreu por crer em Jesus (como mártires cristãos de hoje). Ele morreu por acreditar nas verdades da Reforma.
Nós estaríamos errados se pensássemos que Tyndale, que traduziu a Bíblia do grego para o inglês, era uma exceção. Como Tyndale havia testemunhado, muitos outros reformadores morreram por crimes muito menores contra a Igreja Católica Romana. Homens foram jogados na prisão e executados por andarem com os escritos de Lutero. Além de Tyndale, uma multidão de outros mártires poderiam ser citados. Considerem o reinado da rainha Maria (1553-58), conhecida como “Bloody Mary”. John Rogers foi o primeiro a ser martirizado em seu reinado. Rogers foi queimado por ensinar as verdades da Reforma. De fato, Rogers incentivou Tyndale a distribuir o Novo Testamento em Inglês.
Outros- mais famosos como Hugh Latimer e Nicholas Ridley – seguiriam os passos de Rogers. Ambos rejeitaram a autoridade papal e a massa Romana e se enterraram em sua condenação em 16 de outubro de 1655. Quando Latimer e Ridley foram amarrados um de costas para o outro (para serem queimados), Latimer soltou a famosa frase: “Que seja de bom conforto, Mr. Ridley, e interprete bem. Neste dia nós acenderemos uma vela para a graça de Deus na Inglaterra que eu creio que nunca se apagará – interprete a vela.”
Lições de seus Testemunhos
O que é tão incrível sobre a morte destes homens? Eles não somente estavam prontos a morrerem porque eram cristãos, mas também porque criam nas doutrinas que importavam. Homens como Tyndale, Rogers, Latimer, Ridley e muitos outros estavam dispostos a serem queimados por doutrinas como Sola Scriptura e Sola Fide. Já que não estamos correndo o risco de sermos queimados por traduzirmos as escrituras para o inglês ou por crermos nos solas da Reforma, há inúmeras lições que podemos tirar destes testemunhos.
Primeiro, já que essas eram verdades por que muitos cristãos morreram, nós deveremos valorizá-las e não tomá-las como garantidas. Quando abrir a Bíblia nas manhãs para a devocional, tire um minutinho para se lembrar que homens como Tyndale morreram para que você pudesse ler a Bíblia em sua língua. Eu me lembro do exemplo de Steve Lawson, pastor da Christ Fellowship Baptist Church em Mobile, Alabama. Na primeira página da Bíblia de Lawson, ele colocou uma gravura de John Rogers e, nas últimas páginas, uma gravura que mostrava seu martírio, sendo queimado. Para Lawson, essas gravuras o lembravam que, toda vez que ele abria a Palavra de Deus, cristãos como Rogers deixaram suas vidas para que essas grandes verdades fossem proclamadas hoje.
Em Segundo lugar, “interprete” hoje ao ficar firme pelas doutrinas que esses homens morreram para defender. Não seja relativo no seu comprometimento com a doutrina, até mesmo ao ponto de colocar sua popularidade, carreira, reputação e sucesso em xeque. Hoje nós não nos defrontamos com o fato de podermos morrer por doutrinas como a justificação pela fé somente e o sacerdócio universal. Por isso, ao testemunhar dessas doutrinas, nós deveríamos ser ainda mais enfáticos, lembrando-nos do custo delas.
Em outras palavras, se esses homens estavam dispostos a morrer por tais verdades, quanto mais eu devo estar disposto a viver e permanecer firme nelas hoje? Muitos exemplos vem a mente. Se você é um pastor, ministrando em uma igreja complicada, não diminua o seu comprometimento com a verdade, mesmo quando aqueles em sua congregação criticam as doutrinas que você proclama. Ou então você é um professor cercado de colegas liberais. Seja firme em afirmar a sã doutrina, mesmo se custar sua carreira. Talvez você seja um estudante que está sendo criticado por crer que a Bíblia é a Palavra de Deus inspirada e inerrante. Permaneça determinado e imutável na sua afirmação sobre a Palavra de Deus. Você pode também ser um cristão que é tentado a rejeitar a doutrina da punição eterna ou a exclusividade do evangelho. Esteja atento para não ser vítima de falsa doutrina e falhar em escutar a admoestação de Paulo e o seu aviso para somente escutar a sã doutrina (1Tm 6.3-4; cf. 1Tm 4.6; 2Tm4.2-3; Tt1.9; 2.1).
Se eles estavam dispostos a morrer por tais verdades, quanto mais devo estar disposto a viver e permanecer firme nelas?
Estamos dispostos a lutar não só pelo fato de sermos cristãos, mas também pelas doutrinas cristãs? Que estejamos entre aqueles que como Latimer disse: “interpretemos”.
Nota do Tradutor: A palavra “interprete” foi traduzida do inglês -play the man- que também pode ser traduzida como “seja corajoso”. Entretanto foi escolhida “interprete” pelo sentido da frase usada por Latimer dar margem para essa visão.